Livros na Telona: Diferenças de It: Capítulo 1 e o livro




Entrando mais fundo em Derry
(contém spoilers) 

Na resenha que fiz do livro (caso não tenha lido e queira ler ou queira baixar o livro para ler, clique aqui) contei toda a história, e agora, vamos entrar mais fundo em Derry. Vou comentar sobre alguns momentos bizarros da história, o final e as diferenças do livro com a parte 1 do filme. 

1) IT não é bem um livro de terror


Tem a coisa e monstros, mas no filme não achei aterrorizante ou assustador. Assisti no cinema e vi muita gente se assustando, mas eu fiquei tranquila. Dei risada com o jeito do Penny avançar nas crianças. Considero ume terror leve e o livro mais fantasia. 

É uma história que fala sobre amizade e aquele clássico filme estilo anos 80, que as crianças provam sua amizade e lealdade umas com as outras enquanto salvam o mundo. Eles crescem e precisam provar tudo de novo. 

É também uma história sobre a infância. De como as coisas são vistas com outros olhos e de como os adultos são tapados para o que acontece no mundo delas. É legal ver como o autor desenrola isso ao longo da trama.

2) O final é decepcionante

Depois de ler mil páginas, o que o leitor espera é que as últimas 100 sejam excepcionais — e expliquem toda a doideira que rolou até aquele momento. Mas não é isso que acontece. O fim de It decepciona por ser muito alheio ao que se esperava. A história do livro parece muito real, até o leitor se deparar com  um final completamente místico e desconexo. É difícil aceitar o argumento da Coisa ser extraterrestre e, despida de suas máscaras, ter a forma de uma aranha fêmea gigantesca, monstruosa e grávida. 

3)  A Coisa veio do espaço

A  Coisa é sobrenatural, é capaz de mudar sua forma de acordo com o que suas vítimas mais temem. Mas, ao longo do livro, a Coisa parece estar delimitada por regras: ela vive nos esgotos, sai deles em pontos específicos e só ataca crianças quando elas estão sozinhas.

Também sabemos, devido às investigações de Mike Hanlon, que a Coisa já mora em Derry há muitos anos e que seu ciclo de violência se repete a cada 27 anos (aproximadamente) pelo menos desde o século 18.

A explicação do livro é muito mais brochante, revelada quando os garotos inalam fumaça para ter visões. Dois deles têm um flashback de Derry na pré-história e testemunham a Coisa caindo do espaço em uma bola de fogo. Ela veio de algo chamado macroverso e passou milênios esperando os humanos colonizarem a cidade para poder, enfim, começar seu ciclo de violência. Faz pouquíssimo sentido.

4) O mundo em que vivemos foi vomitado por uma tartaruga

Quando as crianças descem ao esgoto para confrontar a Coisa, o monstro não é a única coisa que encontram lá. Também existe uma tartaruga, cuja origem não é explicada, que se mantém quieta e retraída em seu casco. Essa tartaruga é nada menos que a criadora do mundo – nosso universo foi vomitado por ela em uma crise de dor de barriga. Ah, e ainda existe uma terceira entidade, que criou a tartaruga.

Todos esses elementos são simplesmente jogados em IT e, para entendê-los, é preciso ir além no universo de Stephen King. A tartaruga é um personagem importante em A Torre Negra, onde é explicado que ela criou todo o universo em que se passam os livros do autor. É uma história meio viajada, mas que faz sentido dentro do contexto de fantasia de A Torre Negra.

No entanto, para um livro como IT, que se passa quase todo em cenários urbanos e apresenta problemas nada fantasiosos como bullyings, pais negligentes e abuso infantil, o salto entre uma coisa e outra causa espanto.

5) A cidade inteira é a Coisa


Em um dos capítulos narrados pela própria Coisa, é explicado que a cidade de Derry foi influenciada por ela e moldada de modo a servir seu ciclo alimentar. Isso explica, por exemplo, por que tanta gente ignora a violência à sua frente e por que o mapa dos sistemas de esgoto de Derry se perdeu. Também explica como a Coisa é capaz de possuir pessoas, como Henry Bowers e o pai de Beverly.

A Coisa está em todos os lugares.

6) A batalha final é psíquica, e não física

O livro narra as duas ocasiões em que o Clube dos Otários enfrentou a Coisa: em 1958, quando eram crianças, e em 1985, já adultos. Em ambas, o grupo usa o mesmo recurso para enfrentar o monstro: o Ritual de Chüd. Trata-se de um ritual nativo-americano em que é preciso morder a língua da Coisa e fazê-la rir.

No livro, esse ritual não é interpretado literalmente, e sim figurativamente: assim como a Coisa se alimenta do medo das crianças, a arma para vencê-la é usar a criatividade. Efetivamente, quando as crianças passam a imaginar que podem ferir a Coisa, elas conseguem.

Isso não impede, porém, que a batalha seja psíquica, com Bill se vendo em um plano universal e prendendo a língua da Coisa com sua própria boca. Para vencer, ele repete o treino que usa para vencer a gagueira – “Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração”. Dá certo nas duas vezes: em 1958, eles machucam a Coisa, que foge. Em 1985, eles finalmente a matam.


7) Há uma cena de orgia infantil


Depois que as crianças vencem a Coisa pela primeira em 1958. No caminho de volta, elas se perdem no esgoto escuro e entram em desespero. É então que Beverly, única menina do grupo, com 11 anos de idade, decide que sabe o que fazer para que todos fiquem unidos novamente: sexo.

Ela se despe e, um a um, ela convida os meninos a penetrarem-na. Eles obedecem, perdendo a virgindade coletivamente. No final, passado o sexo, um dos garotos se lembra do caminho e eles conseguem voltar em segurança.

Como assim que uma menina precisa fazer sexo com SEIS meninos para "criar um vínculo"? Beverly teve uma infância marcada pelos abusos do pai e continuou sendo física e psicologicamente abusada por seus companheiros na vida adulta. Um pacto de sangue não é suficiente (como o Clube dos Otários fez), não é o bastante para assegurar a manutenção da promessa das crianças na vida adulta? 

Vale lembrar que esse livro foi publicado em 1986. Eis o que o autor teve a dizer a respeito em uma entrevista para seu site oficial:

“Eu não estava pensando muito no aspecto sexual do ato. O livro lida com infância e vida adulta – 1958 e Crescidos. Os adultos não se lembram de sua infância. Nenhum de nós se lembra do que nós fizemos quando éramos crianças – achamos que lembramos, mas não nos lembramos do jeito que realmente aconteceu. Intuitivamente, os Otários sabiam que precisavam se unir novamente. O ato sexual conecta a infância e a vida adulta. É outra versão do túnel de vidro que conecta as bibliotecas infantil e adulta de Derry. Os tempos mudaram desde que eu escrevi essa cena e hoje há mais sensibilidade em relação a essas questões.”

Essa parte vai ficar de fora do filme.

8) A coisa é capaz de ter “filhos”

No confronto final com a Coisa em 1985, os garotos, agora crescidos, voltam ao lar do monstro e encontram ovos. São os filhos da Coisa, ou algo assim. Não se sabe quanto tempo eles levariam para se desenvolver e nem o que eles se tornariam exatamente. Mas não há tempo para descobrir: Ben os pisoteia com violência e o monstro sente os golpes. No final, além de derrotar a Coisa, também somos certificados de que todos os ovos foram exterminados.

Ou será que não?

9) E alguns filhos podem ter sobrevivido


Há indícios de que a Coisa ainda esteja viva ou então, algum de seus filhos. No livro Dreamcatcher, que também se passa em Derry, o vilão é o alienígena Mr. Gray (a imagem acima é do filme de 2003). Ele deseja colocar esporos no sistema de água da cidade para infectar o município com o vírus alienígena e, posteriormente, o mundo. Ele deseja saber onde está a caixa d’água da cidade, mas o protagonista do livro, Jonesy, diz a ele que ela foi destruída em 1985 (nos eventos narrados no final de IT).

A certo ponto, Mr. Gray encontra uma placa que diz: “A todos aqueles perdidos na tempestade / 31 de maio de 1985 / E para as crianças, todas as crianças / De Bill, Ben, Bev, Eddie, Richie, Stan e Mike, com amor / O Clube dos Otários”. E embaixo da placa, escrito em grafite vermelho, há o seguinte dizer: “PENNYWISE VIVE”.

Além disso, em A Torre Negra, há um personagem chamado Dandelo que se alimenta das emoções dos outros. Muitos fãs acreditam que Dandelo e a Coisa sejam a mesma criatura ou, então, da mesma espécie. Como a Coisa botou ovos no final de IT e Derry meio que serve como um portal para a Torre, não é absurda a possibilidade de Dandelo ser um dos filhos da Coisa.

10) O Clube dos Perdedores (ou dos “Otários”)

Bill Denbrough

Ele é o líder tanto no livro quanto no filme, mas, no livro, os demais componentes do grupo demonstram uma reverência maior a quem eles chamam de Big Bill, apelido ausente do filme. Na obra de King, ele é quase que uma figura espiritualmente elevada, tanto que, ao final da linha narrativa de 1958 do livro, é ele quem, sozinho, entra no embate metafísico e extra dimensional contra a Coisa. No filme, ele é decididamente apenas mais um do grupo, que apenas por uma conveniência necessária de roteiro, ganha o protagonismo.

Além disso, sua gagueira, na produção, é muito mais suave do que no livro. Sua obsessão pelo desaparecimento de Georgie é muito maior no filme do que no livro, algo demonstrado por suas teorias sobre para onde o corpo de seu irmão menor poderia ter sido levado, com a construção de um modelo usando o túnel de plástico de seu hamster e os mapas do esgoto da cidade que ele pega das coisas do pai que trabalha lá. Isso se dá pois, no filme, o corpo de Georgie é puxado para o esgoto por Pennywise, deixando no ar (para Bill) se ele está mesmo morto ou apenas desaparecido. No livro, no entanto, o corpo sem um braço de Georgie é encontrado e não há essa dúvida.

Bev Marsh

Bill Gago, desfocado, e Beverly Marsh (Foto: Divulgação)

Assim como no livro, Bev é a primeira do grupo que consegue ferir fisicamente a Coisa, ainda que a maneira como isso acontece seja completamente diferente e bem menos de caso pensado. Enquanto que, na fita, ela simplesmente surge do nada e enfia uma “lança” de metal pela cabeça da criatura, no livro ela usa um estilingue – por ter a melhor mira de todos no grupo – e uma bala de prata que Bill e Ben fabricam a partir de dólares de prata, já que a forma que a Coisa toma na casa da Rua Niebold é a de um lobisomem.

Mas a mais importante diferença entre as Bevs é que a do filme é substancialmente mais madura que a do livro. Percebemos uma autoconsciência sobre sua condição de jovem mulher e da pedofilia – não realizada fisicamente – de seu pai. Além disso, ela tem uma aparência mais rebelde e forte no filme, algo que pode afetar sua caracterização como esposa submissa a um marido violento 27 anos depois, na continuação, se o objetivo for manter a proximidade com o livro.

Ben Hanscom

Ben é exatamente assim: um gordinho tímido apaixonado por Bev e que vive na biblioteca por não ter amigos. No livro, ele não é novo na escola, mas isso é um detalhe insignificante. O que realmente interessa é que suas habilidades, que futuramente o fariam ser um arquiteto renomado mundialmente, não são nem de longe exploradas. No livro, Ben, ao reunir-se com o grupo pela primeira vez, ajuda-os a construir uma represa no rio que é tão eficiente que consegue gerar refluxo de água nas casas da cidade, além de projetar uma sede subterrânea para o clube. Mas a inteligência que caracteriza o personagem no livro não é deixada de lado no filme: Ben, aqui, é o único do grupo que consegue estabelecer um panorama maior para a ameaça que eles enfrentam em razão de sua obsessão com o passado de Derry. Ele não só mostra que a cidade tem taxas de violência assustadoramente mais altas do que o restante do país, como também deduz o caráter cíclico dos surtos de mortes e desparecimento inexplicáveis. 

No filme, essa função de pesquisador é a de Mike, mas não do Mike criança e sim do Mike adulto, o único do grupo que não sai de Derry para viver sua vida, permanecendo por ali pesquisando profundamente sobre a história do local e refazendo toda – ou quase toda – a trajetória da Coisa. É Mike, aliás, que, 27 anos depois, chama os Perdedores de volta à cidade para enfrentar a Coisa. Será interessante ver como isso será trabalhado na continuação. Será que Ben ficará na cidade e Mike tornar-se-á um profissional renomado (não necessariamente em arquitetura)?

Richie Tozier

Uma simpática “mala sem alça” desbocada tanto no livro quanto no filme, a grande diferença de Richie no filme em relação ao romance é que sua habilidade de imitar vozes é quase que integralmente extirpada da história. Isso não exatamente diminui a importância do personagem, mas torna o famoso “bip, bip, Richie”, que serve para calá-lo toda vez que fala algo inapropriado, algo completamente deslocado no filme. Além disso, vê-se que os roteiristas preferiram assim o fazer para evitar terem que lidar com as passagens mais politicamente incorretas do livro, com Richie – de forma benigna, devo ressaltar – dando voz ao preconceito de adultos com suas piadas que hoje seriam vistas como absurdas e, provavelmente, alvo de discussões acaloradas em redes sociais.

Assim como no livro, Richie é o único que não vê, separadamente, uma manifestação da Coisa antes dos eventos que os reúnem. Mas, no livro, a questão é mais inteligentemente inserida: não é que Richie não veja, mas sim que ele tenha sublimado um momento de seu passado recente quando teve que “sobreviver” ao ataque da horrível estátua de plástico de Paul Bunyan (do folclore americano e que está no filme, aliás, na sequência em que eles estão conversando na feira da cidade) que ganha vida e tenta matá-lo a machadadas. Ele descartara esse momento como um pesadelo e se recusa, até muito a frente no livro, a aceitá-la como parte do que a Coisa faz para assustar e matar crianças. Em outras palavras, ainda que seja fiel ao livro Richie não ter seu momento solitário com o monstro, é deveras estranho e equivocado sob o ponto-de-vista narrativo que isso passe completamente em branco. Afinal, se cada um dos Perdedores ganha seu momento solo de horror, não haveria explicação lógica para que Richie fosse o único a ficar de fora.

Eddie Kaspbrack

Eddie é o mais perfeitamente caracterizado personagem do Clube dos Perdedores em relação ao material fonte. Hipocondríaco, asmático psicossomático, dominado por uma mãe obesa, fazendo uso de placebos, vendo um mendigo leproso como sua manifestação pessoal da Coisa e tendo seu braço quebrado durante a aventura, é como ver as páginas do romance de King se materializarem completamente diante de nossos olhos.

Stan Uris

Stan, assim como no livro, é um dos personagens menos desenvolvidos no livro. Mas o que é mostrado no filme condiz perfeitamente com o personagem, especialmente o medo paralisante que ele tem da Coisa e sua maneira toda certinha de ser, representada pela forma como se veste e pela maneira como faz praticamente tudo, da limpeza do banheiro de Bev (ele é o único a metodicamente limpar a janela), até a forma como ele estaciona sua bicicleta (todo mundo joga no chão, mas ele usa o descanso). No entanto, seu hobby é completamente cortado do filme: Stan adora observar pássaros, sempre andando com um livro sobre o assunto no bolso de trás de sua calça. Curiosamente, apesar de seu medo e por ter uma compreensão maior sobre o que é a Coisa, é de Stan, não de Bill que parte o juramento de sangue dos perdedores ao final.

Mike Hanlon

Mike é outro personagem que, quando criança, não ganha muito desenvolvimento no livro, algo que, de certa forma, é refletido no filme. A morte de seus pais e seu trabalho no matadouro são novidades do roteiro, ainda que, no livro, seu pai lhe conte a história do Black Spot (mencionado no filme), bar criado por negros para negros em vista da segregação racial, e que é incendiado criminosamente pela Legião da Decência Branca, a KKK do norte dos EUA.

Como mencionei, o Mike adulto é de fundamental importância para a história, mas seu papel de historiador parece ter sido “usurpado” por Ben, o que pode alterar a caracterização dos dois na continuação, ainda que também seja perfeitamente possível que Mike assuma esse manto depois dos eventos do primeiro filme.

11) Stephen King estava bem louco quando escreveu

Nos anos 80, Stephen King era viciado em álcool e cocaína a tal ponto que ele chegava a precisar enfiar algodão no nariz para impedir que gotas de sangue caíssem em sua máquina de escrever. Ele ficava sóbrio por aproximadamente 3 horas por dia nessa época. Sua esposa se acostumou a encontrá-lo desmaiado em poças de vômito.

E foi nesse estado que King escreveu IT, Misery, Christine, Pet Sematary, Cujo e os primeiros volumes de A Torre Negra, entre outros best-sellers. Não à toa, um de seus temas recorrentes é o vício em álcool e a violência resultante. Esses maus hábitos cobraram seu preço: King já declarou, por exemplo, que não se lembra de ter escrito Cujo. Ele só foi ficar limpo (após muitas tentativas) nos anos 90.

Então, quando você estiver vendo IT nos cinemas, lembre-se: essa história foi escrita por um bêbado que acordava coberto de vômito.

Vou encerrar por aqui, mas se vocês querem ler mais sobre a crítica, clique aqui, lá também fala sobre  a gangue de Henry, sobre os adultos, a casa na Rua Nielbolt, Penny, o confronto final e o futuro.


Créditos: Super Interessante  // Plano Crítico 

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